Em 1943, as notícias do levante do Gueto de Varsóvia se espalharam rapidamente, chegando aos ouvidos de Hirsch Glick, jovem judeu lituano de 21 anos, que morava no Gueto de Vilna. Os mais famosos partisans judeus, liderados por Mordechaj Anielewicz, inspiraram Glick a escrever um poema em yiddish, cuja primeira estrofe de esperança dizia:

Não diga: “este é meu último caminho
O céu tenebroso escondeu a luz do dia”
Este é o dia que esperávamos que chegasse
E a nossa marcha ainda trovejará “estamos aqui”!

A jovem Rachel Margolis, integrante da “Organização Partisan Unida”, o grupo da resistência judaica do gueto, ouviu Hirschke (como ela o chamava carinhosamente) declamar seu poema com emoção e, imediatamente, lhe veio à cabeça uma melodia soviética para acompanhar a poesia. Trata-se de uma mar cha dos irmãos Dmitri e Daniel Pokrass, judeus da União Soviética, que a compuseram para uma poesia de Alexey Surkov, para fazer parte de um filme de 1938.

Os irmãos Pokrass contaram mais tarde que sua marcha foi baseada na melodia da famosíssima canção yiddish “Oyfn Pripetshik”, aquela que Spielberg, bastante mais tarde, usaria na inesquecível cena da menina do casaco vermelho na Lista de Schindler. Isto de certa forma fecha um ciclo, acho eu.

A canção “Zog Nit Keynmol” (são as primeiras palavras em yidish) se espalhou rapidamente pelo gueto e muito além dele, nos outros guetos, nos campos de concentração, e pelas florestas onde os partisans se escondiam. Claro que a canção também chegou ao Yishuv na Palestina, onde o poeta Avraham Shlonsky a traduziu ao hebraico, publicando-a em fevereiro de 1945 no diário HaMishmar. Eu não falo yiddish, então ofereço-lhes no final deste artigo a tradução ao português da letra em hebraico.

Até aí era a história que eu queria contar, de como surgiu o Hino dos Partisans Judeus. Fazendo a pesquisa para este texto, acabei conhecendo um pouco quem foi Rachel Margolis, e a ela eu dedico este artigo.

Rachel Margolis

Rachel Margolis tinha 20 anos quando a Lituânia foi invadida pelos nazistas. Elas encontrou refúgio em uma família de cristãos, mas acabou optando em ir ao gueto de Vilna, para se juntar à resistência judaica.

“Todos estavam ansiosos por lutar. Nossa missão era adquirir armas, completar preparações militares, tudo isto com o objetivo de fazer um levante no gueto. Se morrêssemos, seria com honra, tendo provado à humanidade que não somos ovelhas indo silenciosamente ao matadouro.”

A comparação com ovelhas é familiar, e não por acaso. Esta é uma frase famosa de Abba Kovner, comandante da Organização Partisan Unida da qual Rachel fazia parte.

O gueto de Vilna foi liquidado em junho de 1943, e apenas algumas centenas de judeus conseguiram escapar. Rachel foi às florestas lutar com a resistência, explodindo pontes e linhas de trem, essenciais para o abastecimento dos alemães.

Rachel foi a única pessoa de sua família a sobreviver o holocausto; seu pai, sua mãe, e seu irmão foram mortos somente alguns dias antes da liberação da Lituânia em julho de 1944. Depois da guerra, Rachel continuou morando na Lituânia. Ela recebeu um PhD em biologia, e lecionou até os anos 1980. Ela também fundou um museu do holocausto, chamado de Casa Verde de Vilna.

Enquanto era estudante de biologia no final dos anos 1940, Rachel foi voluntária na Universidade de Vilna em um museu judaico. Foi então que dois poetas yiddish, temporariamente responsáveis pelo museu, contaram-lhe sobre Kazimierz Sakovicz. Sakovicz era um jornalista polonês católico, que testemunhou o massacre de Ponár, e o relatou em um diário. Quando ele entendeu que talvez não sobrevivesse a guerra (ele morreu durante o levante polonês conhecido como Operação Tempestade), enterrou em seu jardim pedaços de seu diário, dentro de jarros. Depois da guerra, seus vizinhos desenterraram os jarros e os levaram ao museu judaico. Contudo, Margolis teve que esperar até o colapso da União Soviética em 1991 para finalmente ter acesso a estes documentos. Ela transcreveu e reconstituiu meticulosamente o diário de Kazimierz Sakowicz. Com a edição do historiador israelense Yitzhak Arad (ele também participou da resistência judaica e da soviética), o livro foi publicado sob o título “Diário de Ponary, 1941-1943: O relato de uma testemunha de uma assassinato em massa”. Em Ponár foram mortos cerca de 100 mil pessoas pelas mãos da SS e de colaboradores lituânos. Dentre os cerca de 70 mil judeus mortos, está a família de Margolis.

Rachel escreveu suas memórias da guerra e da resistência no livro “Uma Partisan de Vilna”. Um dos relatos do livro foi tirado de contexto por antissemitas lituanos, que acusaram a resistência judaica de cometer uma “atrocidade comunista” na batalha Kanyuki. Em um artigo de Gordon Brown, ex-premiê britânico, ele conta que diferentemente da Alemanha, a sociedade lituana nunca passou por um período de reconciliação e arrependimento por seu passado nazista, e que há um debate ideológico feroz de como descrever a colaboração de lituanos comuns com as forças de ocupação alemãs.

O novo nacionalismo dos países bálticos está reescrevendo a história, colocando a ocupação nazista em pé de igualdade com o regime soviético, misturando o que não pode ser misturado. Uma comissão lituana se propõe a investigar os crimes dos “regimes de ocupação” (nazista e comunista), porém deixam de fora os crimes de genocídio cometidos por forças locais. Sobreviventes do holocausto, como Yitzhak Arad e outros, chegaram a ser investigados por crimes de guerra, sob a alegação de terem se juntado aos soviéticos na luta contra os nazistas! Rachel Margolis não foi deixada de lado e foi chamada para testemunhar a respeito das atividades de outra partisan, Fanya Brantsovsky.

Vale a pena repetir: judeus que participaram da resistência contra os nazistas estão sendo acusados de crimes de guerra. É a história sendo reescrita sob os nossos olhos, em pleno ano de 2017.

Com medo da intimidação imposta, Rachel Margolis, que já morava em Israel, não pôde mais voltar a visitar a Lituânia durante o verão, como costumava fazer. Ela faleceu em julho de 2015. Em memória a Rachel, aos partisans, e a todos os que foram mortos no holocausto, é mais importante do que nunca seguir dizendo: estamos aqui!

Hino dos partisans judeus

Versão em hebraico. A versão em yiddish está no final do texto.

Português Transliteração Hebraico
Não diga “este é meu último caminho
O céu tenebroso escondeu a luz do dia”
Este é o dia que esperávamos que chegasse
E a nossa marcha ainda trovejará “estamos aqui”!

Da terra da tâmara até as remotas terras congeladas
Estamos aqui em dores e tormentos
E se uma gota de nosso sangue ali se derramar
Certamente crescerá nossa bravura

A primeira luz da manhã iluminará nosso dia
Com o inimigo nosso ‘ontem’ passara como uma sombra
Mas se Deus-nos-livre a luz tardar em vir
A canção será como um hino de geração em geração

Com sangue e chumbo ela foi escrita
Ela não é a canção dos livres e desimpedidos
Pois entre paredes que caem todo o povo a cantou
Cantaram juntos com revólveres nas mãos

Portanto não diga “meu último caminho
O céu tenebroso escondeu a luz do dia”
Este é o dia que esperávamos que chegasse
E a nossa marcha ainda trovejará “estamos aqui”!
Al na tomar “hine darki haachrona”
Et or hayom histiru shmei haanana
Ze yom nichsafnu lo od yaal veyavo
Umitz’adenu od yar’im “anachnu po”!

Meeretz hatamar ad yarketei kforim
Anachnu po bemach’ovot veisurim
Uvaasher tipat damenu sham nigra
Halo yanuv od oz ruchenu bigvura

Amud hashachar al yomenu or yahel
Im hatzorer yachlof tmolenu kemo tzel
Ach im chalila yeacher lavo haor
Kemo sisma yehe hashir midor ledor

Bichtav hadam vehaoferet hu nichtav
Hu lo shirat tzipor hadror vehamerchav
Ki bein kirot noflim sharuhu kol haam
Yachdav sharuhu venaganim beyadam

Al ken al na tomar “darki haarchrona”
Et or hayom histiru shmei haanana
Ze yom nichsafnu lo od yaal veyavo
Umitz’adenu od yar’im “anachnu po”!
אַל נָא תֹּאמַר: הִנֵּה דַּרְכִּי הָאַחֲרוֹנָה,
אֶת אוֹר הַיּוֹם הִסְתִּירוּ שְׁמֵי הָעֲנָנָה.
זֶה יוֹם נִכְסַפְנוּ לוֹ עוֹד יַעַל וְיָבוֹא,
וּמִצְעָדֵנוּ עוֹד יַרְעִים: אֲנַחְנוּ פֹּה!

מֵאֶרֶץ הַתָּמָר עַד יַרְכְּתֵי כְּפוֹרִים
אֲנַחְנוּ פֹּה בְּמַכְאוֹבוֹת וְיִסּוּרִים
וּבַאֲשֶׁר טִפַּת דָּמֵנוּ שָׁם נִגְּרָה
הֲלֹא יָנוּב עוֹד עֹז רוּחֵנוּ בִּגְבוּרָה.

עַמּוּד הַשַּׁחַר עַל יוֹמֵנוּ אוֹר יָהֵל.
עִם הַצּוֹרֵר יַחֲלֹף תְּמוֹלֵנוּ כְּמוֹ צֵל.
אַךְ אִם חָלִילָה יְאַחֵר לָבוֹא הָאוֹר
כְּמוֹ סִיסְמָה יְהֵא הַשִּׁיר מִדּוֹר לְדוֹר.

בִּכְתַב הַדָּם וְהָעוֹפֶרֶת הוּא נִכְתַּב;
הוּא לֹא שִׁירַת צִפּוֹר הַדְּרוֹר וְהַמֶּרְחָב,
כִּי בֵּין קִירוֹת נוֹפְלִים שָׁרוּהוּ כָּל הָעָם,
יַחְדָּיו שָׁרוּהוּ וְנאַגאַנִים בְּיָדָם.

עַל כֵּן אַל נָא תֹּאמַר: דַּרְכִּי הָאַחֲרוֹנָה
אֶת אוֹר הַיּוֹם הִסְתִּירוּ שְׁמֵי הָעֲנָנָה.
זֶה יוֹם נִכְסַפְנוּ לוֹ עוֹד יַעַל וְיָבוֹא,
וּמִצְעָדֵנוּ עוֹד יַרְעִים: אֲנַחְנוּ פֹּה!

Versão em yiddish, cantada por Chava Alberstein.


Imagem de destaque: Pilar da Bravura, no museu do holocausto Yad vaShem, em Jerusalém. Crédito da imagem, Flickr de Benjamin, segundo a seguinte licença Creative Commons.

Fontes: Zemereshet, Oneg Shabbat, YouTube, keene.edu, defendinghistory.com, Amazon, Academic Studies Press, Independent, Wikipedia 1 e 2.